Cópia Fiel
Galeria Babel
Março de 2023
A China – uma civilização milenar com mais de 4.000 anos de história e com a maiorpopulação terrestre-, sempre foi um país muito distante do Brasil. Este fato mudouradicalmente com o impacto da globalização provocado pela economia mundial, umembuste para os países mais pobres. Para a China foi, sem dúvida, um “negócio daChina”. A China é responsável pela produção de incontáveis produtos consumidos pornós, do ocidente. Por outro lado, nós, do Brasil, exportamos uma quantidade imensa deprodutos agropecuários para alimentar a população com mais de 1 bilhão e quatrocentosmilhões de chineses. Somos todos reféns desta situação, ocidente e oriente.
Alexandre Frangioni vem desenvolvendo, desde 2018, uma ampla pesquisa que propõeuma reflexão sobre as implicações da globalização na sociedade atual. O que, afinal, aglobalização trouxe de positivo para o mundo? A pasteurização das diferentes e ricasculturas de diversas regiões mundiais? O consumo exacerbado de produtos que, namaioria das vezes, não precisamos? Ou o crescimento nas diferenças sociais?
A série “Made in China” foi realizada nestes últimos anos como uma crítica bem-humorada à sociedade atual, moldada pelo consumo que põe em xeque a preservaçãoda natureza, das diferentes culturas e dos seres que habitam nosso planeta. A repetição da frase Made in China produzida com obsessão por Frangioni, é a mesma que encontramos em milhares de produtos que consumimos, muitos deles “cópias originais”de marcas de roupas e acessórios inacessíveis para a maioria da população mundial, produzidos em larga escala por pessoas que vivem em extrema pobreza na China e na Índia.
“A atitude de Frangioni diante de ideias que podem ser difíceis de serem conceituadaspode resumir-se na seguinte frase: ele transforma ideias complexas em algo tão eficientee simples como uma imagem”, escreve o crítico Christian Viveros-Fauné no livro One ArtHistory, publicado em 2021 reunindo diversos trabalhos do artista. Ou seja, ele tomaslogans de marketing que vemos todos os dias, mesmo que estejam implícitos das maisdiversas maneiras, e dá um outro contexto para eles.
O ser humano utiliza, há séculos, a repetição de símbolos, códigos e ícones como formade impor culturas, religiões ou hábitos. Na arte religiosa da idade medieval e renascentista, a repetição de fatos ocorridos na religião cristã é utilizada para divulgar aIgreja, haja vista que o crucifixo é um dos símbolos que mais se repete na história e em nosso cotidiano ao longo de mais de 2 mil anos. Não existe uma marca, objeto ou logotipoque tenha superado o uso deste símbolo até hoje.Já a arte contemporânea, desde o artista francês Marcel Duchamp (1887-1968), temcomo objetivo justamente trazer um outro contexto ou lugar para esses símbolos, íconese objetos. Este fato é notável nas obras apresentadas nesta mostra, assim como asrelações antagônicas entre questões também contemporâneas como qualidade e custo,sustentabilidade e produtividade, pobreza e riqueza, autenticidade e cópia.
A produção de Frangioni está em sintonia com os conceitos artísticos de Duchamp, mas,também, tangenciam as reflexões econômicas, políticas e sociais abordadas naprodução de Cildo Meireles (Rio de Janeiro, 1948), por exemplo, ou a obra de ácidohumor de Nelson Leirner (São Paulo, 1932 – Rio de Janeiro, 2020), fundamentais para acompreensão da história contemporânea da arte brasileira. Como, também, vai deencontro às propostas curatoriais da XV Documenta de Kassel (2022), cujos curadores integrantes do coletivo Ruangrupa, de Jakarta, propuseram ações artísticas baseadas navivência do Lumbung (celeiro de arroz), onde as comunidades dividem igualitariamenteseu alimento. A arte também deve nos “alimentar” de forma igualitária e por meio deações em que todos participam e onde a arte deixa de ter um valor monetário e passa ater um valor social. Desta forma, colocam em xeque todo o sistema econômico adotadono mundo que torna os ricos cada vez mais ricos e o pobres cada vez mais pobres.
Os trabalhos de Frangioni trazem uma proposta similar àquela apresentada pelos integrantes do Ruangrupa, já que criticam o sistema econômico e social no qual vivemos. Entretanto, Frangioni o faz de maneira inversa, uma vez que cada trabalho é realizadomanualmente, deixando a “marca do artista”. Desde os engradados de madeira que são minuciosamente, redesenhados, copiados e refeitos à frase Made in China, escrita à maneira da Coca-Cola e impressa em etiquetas que são, “copias fiéis” àquelas coladas nas garrafas do refrigerante, os trabalhos são realizados artesanalmente, quer por meio de colagem, pintura, desenho, bordado ou mesmo impressão, técnicas milenares da arte. Neste sentido, seu trabalho se afasta do “objeto encontrado” tão presente na artecontemporânea mundial.
Assim, este curioso artista, formado em engenharia química, engana o nosso olhar. Afinal,estes trabalhos são cópias ou originais? Ou seriam cópias originais?
Rejane Cintrão
Março 2023